Nos tempos que correm, vemos no YouTube e nas televisões muitos lutadores, treinadores e promotores de MMA (mixed martial arts) a criticarem artes marciais tradicionais, sistemas de defesa pessoal, etc… aparecendo normalmente como experts em tudo o que é luta, referindo-se normalmente à falta de aplicabilidade destas em cenários de combate real.
O que não é nada de novo. Há uns tempos, víamos as mesmas declarações por parte dos adeptos de desportos de combate em geral.
Mas a verdade é que quem pratica MMA, especificamente a parte de competição, está tecnicamente tão mal preparado como qualquer praticante de artes marciais tradicionais (que pratique a sua modalidade em quadro de alta competição) para enfrentar cenários de luta de rua / defesa pessoal. A única vantagem que podem ter é a consciência de que não são feitos de vidro e sabem por experiência que conseguem suportar alguma pancada antes de cair, o que nem sempre se verifica em praticantes de outras modalidades.
Este artigo é uma chamada de atenção, mas por vezes temos mesmo de as ler para relembrar. As Artes Marciais, misturadas ou não, preparam geralmente os atletas para competição, não para luta de rua / defesa pessoal.
(os filmes abaixo não são recomendados a menores ou pessoas impressionáveis)
É verdade que as artes marciais tradicionais estão na sua maioria estilizadas e, como tal, desenquadradas da realidade de uma luta de rua real, e a maior parte dos “sistemas de defesa pessoal” que por aí se vendem têm muito de “treta” (não te choques com a palavra, podes ver no artigo “Defesa Pessoal não se aprende em cursos de 2 dias” o que penso sobre o assunto), mesmo porque defesa pessoal não é na sua maioria o treino de desarme, combate ou luta, mas um “pitch de vendas” fácil para vender a classe de uma qualquer arte marcial. Além disso, é muito mais fácil ensinar movimentos ou técnicas de desarme do que ensinar pessoas a identificar perigos, riscos, comportamentos, etc… e explicar a um aluno que a maior parte do treino é aprender a fugir…
Mas também é verdade que a competição, nomeadamente o MMA, tem pouco a ver com a realidade de um combate de rua. Um combate contra 1 adversário, com regras, árbitros, assaltos, pavimento e limites definidos e protegidos… não é luta de rua e muito menos defesa pessoal.
Para não bater outra vez nas artes marciais tradicionais, nem voltar ao tema da defesa pessoal, vamos pensar um pouco na competição de MMA vs luta de rua (vou pegar no MMA, porque tinha de escolher uma modalidade exemplo e são os heróis do momento no que toca a “YouTubers”).
Pois é, MMA tem muito sangue e pancadaria de criar bicho, mas é um desporto de competição, tem um quadro competitivo, regras e um formato que favorece a sua aceitação como desporto, protegendo a integridade física dos participantes, etc,… conceitos totalmente opostos ao que se passa num cenário de agressão física na rua.
Regras.
Na rua, não há regras, tudo é válido. Em competição, não é bem assim. Já os antigos Gregos em lutas de Pancrácio tinham algumas regras, como por exemplo a proibição de enfiar os dedos nos olhos do adversário, ou morder (com excepção de Esparta, onde não se verificavam estas duas regras), e existiam árbitros que, armados de uma vara, impunham as regras (mesmo em Esparta).
O MMA, por exemplo, apesar da sua origem mais “livre” (o vale tudo, que por sinal também tinha algumas regras), tem mais umas quantas regras do que os antigos Gregos. Os tempos são outros e os comportamentos antidesportivos são proibidos. Como tal, é necessária a implementação de regras de conduta.
Passo a enumerar algumas das regras de MMA:
(Regras retiradas da Wikipédia)
Proibido:
- Cabeçada, dedo no olho, morder, puxar cabelo, beliscar, arranhar e cuspir no adversário
- Ataque à boca do adversário com a mão, à região genital ou ao rim com o calcanhar
- Enfiar o dedo em qualquer orifício, corte ou laceração, e manipular as articulações pequenas do adversário
- Ataques à coluna ou parte de trás da cabeça, golpear de cima para baixo usando a ponta do cotovelo, qualquer tipo de ataque à garganta e agarrar a clavícula
- Chutar ou atingir com o pé ou a perna a cabeça do adversário que está no chão (excepto no One Championship).
- Chutar ou atingir com o joelho a cabeça do adversário que está no chão
- Arremessar o adversário de cabeça no chão ou atirá-lo para fora do ringue
- Segurar calção ou luvas do adversário, assim como agarrar a grade do octógono
- Utilizar linguagem imprópria ou abusiva no ringue ou desrespeitar as instruções do árbitro
- Atacar o adversário nos intervalos que esteja sob cuidados do juiz ou após a campainha ter anunciado o fim do assalto
- Sem limitação, evitar contacto com adversário, cair de forma intencional, derrubar insistentemente o protector bucal ou fingir lesão
- Interferência do canto ou jogar toalha durante a luta
- Usar alguma substância escorregadia no corpo
O formato.
Mesmo antes de entrares em confronto, numa competição aceitas um determinado formato, normalmente composto por uma definição do recinto, das regras de participação, das características dos participantes, do equipamento que podem usar…
Recinto.
No caso do MMA, ou em competições de Artes Marciais, o confronto realiza-se num recinto redondo, quadrado, hexagonal ou octogonal, com uma vedação ou área de segurança que impede os praticantes de serem lançados para o exterior. O mesmo é válido para outras modalidades de contacto.
Quando um atleta é projectado contra o chão ou contra os limites do recinto, ou se atira de propósito para o chão de modo a ganhar alguma vantagem, não está propriamente a cair num chão de cimento, alcatrão ou pedras, não corre o risco de bater num lancil de um passeio, de cair num buraco ou de bater contra um carro, muro ou parede de tijolo, não se vai cortar em vidros, lixo, etc… Está protegido pela segurança relativa de estar num ambiente controlado. Do mesmo modo, ao entrar numa destas competições, o atleta não está sujeito a aparecer um amigo, familiar ou conhecido que resolva entrar na disputa. Normalmente, estas competições são de 1 para 1, as atenções podem estar totalmente focadas no adversário que está à nossa frente sem preocupação de vir alguém por trás e agarrar-nos ou bater-nos.
Equipamento.
Todo o atleta, ao entrar numa competição, tem obrigatoriamente uma série de constrangimentos ao equipamento que pode usar, seja para se proteger ou para causar dano. Por defeito, quanto mais contacto existir, ou no caso de uso de armas, quanto mais dano se possa causar, mais equipamento de protecção será utilizado. Coquilhas, peitorais, protecções de dentes, capacete, caneleiras, são exemplos que todos conhecemos e nos habituámos a ver nas competições.
Estamos normalmente seguros de que ninguém vai agarrar numa cadeira ou num pau, que o adversário não traz consigo uma arma branca ou uma arma de fogo. A disputa não se vai transformar num cenário de combate armado.
Na rua, existem inúmeros obstáculos, inúmeros objectos passíveis de serem usados como arma, e nunca se sabe que armas podem estar ocultas no/s adversário/s, pois a única protecção que usamos é a roupa do dia-a-dia.
Categorias de peso.
Categorias de peso e separação por género tornam a competição mais justa, valorizando a técnica e colocando os atletas em algum pé de igualdade. As competições tornam-se mais atractivas. Contudo, o mesmo não se verifica em situações de agressão. Se virmos as estatísticas de crime, em Portugal e noutros países, vamos encontrar que na maioria das situações reportadas às Polícias o agressor físico beneficia normalmente de uma diferença física considerável, seja por tamanho, sexo ou idade (além de factores sociais e económicos), muitas vezes está armado e/ou não vem sozinho. O facto de estarmos em ambiente urbano e vivermos em sociedade implica que não estamos sozinhos. Por vezes, estamos rodeados de amigos, mas também de potenciais agressores.
Tivemos uma série de exemplos disso recentemente a passar na televisão, mesmo nas camadas mais jovens.
Conclusão
Claro que a minha intenção não é menosprezar as MMA, Artes Marciais Tradicionais, sistemas de combate moderno, desportos de combate, etc… Alguns praticantes sim, os que têm a mania que tudo sabem e os que têm falta de modéstia. Isso impossibilita-os de perceber que, embora o que fazem seja mais ou menos eficaz nas situações que enfrentam em competição, a menos que o tenham testado na rua contra adversários que realmente lhes desejem causar dano, convém que tenham algum cuidado com o que vendem online ou pessoalmente aos alunos que lhes dão ouvidos.
Aos restantes, posso garantir que existe espaço e número de interessados mais do que suficiente para todos estes géneros, e mais que não seja, pela prática de exercício físico, pela organização ou princípios, continuem a dedicar-se aos vossos treinos com lealdade e respeito pelo vosso esforço e dedicação, vosso e dos outros, acredito que não existe treino ou exercício físico mais completo do que o das Artes Marciais (têm obrigação de assim ser), aproveitem.
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