A convite de Pedro Velasco, participei no evento ‘Retorno à la Espada (2023)’ com o objetivo de ministrar um seminário prático de iniciação ao Jogo do Pau Português.
Pedro é o responsável pela Sala de Armas “Pedro del Monte” de Granada, e é também quem organiza o evento anualmente, faz mais de uma década! Cada ano tem um tema distinto, e o actual incidia sobre sistemas marciais históricos das duas Penínsulas: a Ibérica e a Itálica.
Ao longo dos três dias (bastante recheados) do evento, foi possível aceder a palestras e conferências, seminários práticos, jogos de armas (demonstrativos para o público e duelos livres), assim como aprofundamento das matérias abordadas durante os seminários práticos (por quem solicitava posteriormente), e muitos assaltos livres!
É realmente algo incrível, ver reunidas pessoas de regiões diferentes e que praticam estilos distintos, porém uma vontade partilhada que os une a todos, que é a de tentar compreender e aperfeiçoar a prática de artes do passado. Vejo estes momentos como uma forma de estimar a nossa condição humana, e como nos adaptamos a certos contextos e limites, que de alguma forma se repetem. Contudo, ao olhar desta forma para o nosso legado, situa-nos com outra apreciação e humildade perante o conhecimento que frágilmente poderia ter sido esquecido, e que fazemos a nossa parte para que tal não aconteça.
1º dia – Palestras
O evento arrancou numa sexta-feira à tarde, com quatro palestras, cujos temas eram:
- Pedro Monte, una vida entre dos penínsulas (por Pedro Velasco);
- Introducción a las transferencias de valores disciplinarios militares hispánicos en Portugal entre los siglos XVI al XVIII (por Plácida Molina);
- Galeras, los caballos de guerra del Mare Nostrum (por Juan Diego Conde);
- La esgrima ibérica, un patrimonio compartido (por Manuel Valle).
As palestras tiveram lugar na Corrala de Santiago (edifício histórico, com arquitetura típica Granadina, com o pátio central interno e poço), edifício muito bonito, mas bonito foi estar rodeado de pessoas que se situam em vários pontos do espectro que vai desde escolar a atirador, e que discutem fervorosamente e com humor, prolongando assim o entusiasmado debate pelo jantar afora, até horas já bastante tardias…
2º dia – Seminários Práticos
Sábado foi o dia dos seminários práticos, e como ocorriam emparelhados, lamentavelmente não consegui participar em todos. Contudo, gostaria de numa próxima oportunidade participar no seminário de Eduardo Varela, sobre ‘Espada y rodela de Domingo Luis Godinho’, assim como a lição sobre ‘El uso de la psicología y la táctica como herramientas en el assalto’ de Juan Diego Conde, e Lucha hispana según Pedro Monte dado por Pedro Velasco.
Apesar disso, consegui aproveitar o seminário sobre a Verdadera Destreza (por Plácida Molina), Espada de duas mãos segundo Pedro Monte (por Pedro Velasco), assim como ‘Giocco largo’ do sistema de Fiore de’i Liberi (por Federico Malagutti). Os primeiros dois são de sistemas que não me são tão familiares, e foi sem dúvida enriquecedor poder ter algumas luzes sobre os princípios que os regem. Já dentro do sistema de Fiore, que me é familiar, gostei de ver como Federico interpretava e orientava as jogadas, pois existem sempre nuances e diferenças que nos ajudam a completar a nossa interpretação.
Quanto ao seminário de Jogo do Pau Português, este contou com 18 participantes cheios de ânimo e que tornaram a experiência bastante prazerosa, pois demonstraram curiosidade e interesse não só na história e contexto desta arte, mas também na mecânica e pormenores técnicos. Deve-se ter em conta que apesar da similaridade para com sistemas de outras armas em que se utilizam simultaneamente duas mãos (como é o caso da espada longa), é bastante desafiante adaptar a pormenores como: a da mudança do local da mão ativa-dominante na pega a arma; defender na ponta (algo que quebraria a espada seria defender no seu fraco); ou então a rotação da anca; e rotação sobre os calcanhares e não pontas dos pés (que é muito comum noutros sistemas).
Para o seminário do Jogo do Pau, a organização foi muito amável ao dispor do equipamento necessário, pois cortaram e prepararam vários varapaus, em madeira de Castanheiro (Castanea sativa). Esta madeira é aquela que é utilizada mais comummente nesta região para ferramentas/instrumentos de cabo, e a madeira por ser mais rija tem um ressaltar ligeiramente diferente daquele a que nos habituámos mais, que é a madeira de Lódão (Celtis australis). Apenas pude levar dois exemplares dos últimos comigo, por questões de dimensionamento de bagagem a levar no avião, mas para mim também foi uma experiência nova, a de poder testar os mesmo golpes com madeiras diferentes.
Entre os participantes desta oficina, estavam dois camaradas da luta de Garrote das Canárias, Carlos Barrera, e Williams Gámez, da Federación Lucha Del Garrote Canario. Foi especialmente interessante poder trocar detalhes sobre a postura das pernas, diferenças em forma de pegar e distâncias de combate. A luta de Garrote apesar de ser feita a pega a duas mãos, trabalha numa distância muito mais próxima, e chega-se mesmo a entrar em situações de luta corpo-a-corpo, envolvendo o varapau nas chaves e prisões.
Na mesma tarde, mudámos para uma praça central no meio da povoação de Zubía, onde houve várias demonstrações de combates com o público a assistir.
Começou-se com a demonstração da Luta de Garrote, e foi fascinante poder finalmente assistir ao vivo! Seguiram-se mais demonstrações, de espada ropeira, colocando a Verdadera Destreza – Península Ibérica (representada por Plácida Molina) versus a Esgrima Comum ou Vulgar, neste caso do sistema de Capoferro – Península itálica (representado por mim). Sem querer ofuscar o crédito à forma graciosa e meticulosa como se mexe e trabalha a minha amiga Plácida, deste combate retiro a lição sobre a incompatibilidade dos jogos de arranque e postura larga de pernas de Capoferro para aquele tipo de terreno. Capoferro e pavimentos em saibro pedem que se use parcimónia e deslocações mais curtas. Em seguida, Pedro Velasco e Federico Malagutti demonstraram um combate de espada longa medieval, e pelo meio dos floreios elegantes, alguns momentos de proximidade de corpo-a-corpo, algo tão inerente e típico destes sistemas.
Após os combates demonstrativos seguiram-se assaltos que estariam a ser avaliadas pelos colegas tiradores, cada um munido por uma fichinha, e no final dos assaltos (que eram agrupados por tipo de arma) cada um colocaria o seu vcasoto (ficha) dentro da máscara d@ tirador@ que considerava lutar com mais marcialidade e excelência. Uma forma diferente e interessante de atribuir louros numa competição, em que os premiados depois recebiam uma edição da AGEA Editora, assim como um lugar oferecido na próxima edição anual do evento, penso que é um sistema de premiação bastante cativante!
Falando em livros, a biblioteca da Sala de Armas Pedro del Monte ficou bastante mais gordinha com a oferta do livro ‘O Jogo do pau Português’ (2020) de Paulo Lopes, gentilmente regalada pela Associação Jogo do Pau Cascais – Stafffighters.
Adicionalmente os nossos amigos do garrote das Canárias também ofereceram dois livros sobre a sua arte de luta, e assim os sistemas de luta com varapau estão a ganhar terreno no que toca à presença de material escrito em eventos HEMA!
Quanto aos combates, a Plácida, assim como todos os restantes Diestros (tiradores da Verdadeira Destreza) mantiveram sempre uma compostura bonita e ritmada, apesar da natureza do terreno. À medida que o sol desaparecia no horizonte, tornava-se cada vez mais evidente que as luzes que “iluminavam” a praça pública eram demasiado débeis… dando um certo carácter Pirata aos combates a partir desse momento, como quem tem de lutar pela calada da noite, seguindo mais os instintos que os próprios olhos, uma experiência sem igual!
Depois dos treinos, marcados pelo bom ambiente e companheirismo, se fez um jantar na Sala de Armas Pedro del Monte, e em seguida a festa continuou em modo invasão de um bar de metal, munidos com um poster gigante do evento, marcando presença de uma forma pouco usual no cenário nocturno.
Diga-se de passagem que o espaço em si, da Sala de Pedro é um como ver um sonho tornado realidade (pelo menos a meu ver) para qualquer praticante de artes marciais e amante de animais e plantas. Trata-se de um armazém grande, reacondicionado, com espaço para acolher todo o tipo de treinamento, além do espírito, filosofia e ambiente de respeito pela diversidade que aí são cultivadas. Filas e filas de equipamento adornam as paredes, com armaduras, armas de haste, armas de arremesso, espadas, simuladores de espadas, varas, montes de alvos coloridos espalhados, e maior parte dos materiais reaproveitados, transformados. Adicionalmente não faltam tatamis, plantas que prometem expandir pelas vigas e entre estas, tudo protegido por dois Guardiões peludos e patudos, Monte e Golfa!
3º dia – Assaltos livres
No Domingo, último dia, houve tempo e espaço para se poder por à prova temas e teimas altercados ao longo dos dias anteriores. Muitos assaltos livres, experiências tranquilas de técnicas com armas variadas, vi também gente a fazer jogo com armas de haste, espada ropeira, espada ropeira e adaga, espada e broquel, e espada longa. Houve também quem quisesse aprofundar os ataques e defesas do Jogo do Pau, e assim foi possível “varrer” um pouco o pavilhão!
Para o final da tarde, pouco a pouco as pessoas começavam-se a despedir, grandes viagens aguardavam pela frente para quem tinha de regressar a Albacete, Madrid, Bilbao, Barcelona, Polónia e Itália! O meu final de tarde foi passado com os meus amigos galegos, Dinis e Fernando da Arte do Combate, mais Xavier, Juan Diego e Eduardo da Academia de la Espada. Fomos dar um salto a Alhambra tentar desfrutar um pouco melhor da cultura de Granada, e foi bom poder finalmente expressar-me em Português, dando assim descanso ao ouvido em esforço de calibração assim como a língua extenuada de Portuñol.
Em suma, o evento foi uma experiência incrível, bem organizado, marcado pelo espírito de companheirismo e partilha, além de ser em Granada, marcado pela fenomenal cultura Andaluz. Para não falar no enquadramento contrastante de espaço e montanha, marcado por uma paisagem quente e seca, mas como pano de fundo a Serra Nevada, majestosa e com neve no topo. Foi um privilégio poder ver o Jogo do Pau aí representado, e as sementes que ficaram para a posterioridade, livros trocados, contactos para aprofundar informações, e varapaus de Lódão também oferecidos para que hajam mais companheiros e companheiras com quem andar à paulada no futuro!
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