Há alturas, no treino/aprendizagem de cada atleta, em que conseguimos reconhecer que este apresenta uma técnica correcta mas que lhe falta eficácia, aplicabilidade ou capacidade de atingir performances competitivas, se for o caso.
No caso do Grupo de Jogo do Pau de Cascais, acontece muitas vezes vermos um aluno desenvolver as suas capacidades técnicas, uma postura correcta, com boa distribuição do peso e equilíbrio, a movimentação fluida com as distâncias razoavelmente medidas, mas sem capacidade de traduzir isso em velocidade de execução ou eficácia em combate.
O nosso treino baseia-se muito no confronto entre atletas de graduações diferentes/combate livre (jogo) com colegas e professores e, como tal, é relativamente comum um atleta sentir que apesar de estar a corrigir a sua técnica lhe está a faltar qualquer coisa para ser mais eficaz, ou controlar melhor a sua prestação em combate
Quando a técnica está correcta e os resultados não aparecem
No meu entender estas fases de desenvolvimento são naturais e facilmente ultrapassáveis se estivermos atentos, as soubermos reconhecer e adaptarmos o treino/aprendizagem a isso. Prendem-se normalmente com o favorecimento do treino técnico em detrimento de outro tipo de treino, seja físico ou psicológico/ motivacional.
O desfavorecimento do aspecto físico é o exemplo mais fácil de reconhecer, é óbvio que para realizarmos certos movimentos ou para desenvolver certos aspectos de uma aprendizagem técnica temos de ter capacidade física para os realizar, temos de treinar a capacidade física, resistência e agilidade. Não adianta forçar o aluno a movimentações baixas se este não tiver massa muscular e agilidade para manter essas posições, vamos sempre provocar falhas técnicas, frustração e/ou lesões… Por outro lado, a falta de treino psicológico/motivacional vai resultar em dificuldades semelhantes em termos de prestação técnica e frustração.
Para simplificar (muito) vamos supor que o treino/aprendizagem de uma arte marcial se pode dividir em 3 grandes áreas: a Componente Técnica, a Componente Física e a Componente Psicológica/Social ou Motivacional.
Podemos imaginar um triângulo em que cada vértice representa uma destas vertentes de treino e, em teoria, mantendo os treinos equilibrados nestas 3 componentes, claro que os praticantes de artes tenderiam a estar no centro geométrico deste triângulo. Falso.
Não se pode abordar este equilíbrio como uma constante, a aprendizagem de uma arte marcial também não é uma constante. Por vezes vai focar-se mais na componente física, psicológica ou técnica, vai-se adaptando ao longo do tempo, mediante uma série de factores intrínsecos e extrínsecos da própria modalidade e do praticante. Pelo menos, até às graduações tipo “cinta preta”. Depois disso, a história muda de figura, mas vou deixar essa opinião para outras lutas.
Vamos pensar um pouco em cada um destes vértices e nas variações que cada um vai provocar:
1. Aprendizagem técnica.
O treino técnico raramente é equilibrado. As modalidades e/ou programas técnicos, apesar de se apresentarem como guias de aprendizagem iguais para todos, não “encaixam” em todos da mesma maneira.
Quem pratica artes marciais sabe que a progressão entre graduações não é sempre igual, vão encontrar graus mais difíceis e outros mais fáceis de superar, os programas técnicos prevêem graus de dificuldade diferentes para graus de aprendizagem diferentes… É normal que assim seja.
Se acrescentarmos a isso a própria genética de cada praticante que lhe vai permitir ter maior ou menor facilidade de aprender determinados movimentos ou técnicas, e um ensino por turma em que cada atleta está no seu próprio grau de evolução, é óbvio que vamos encontrar altos e baixos na aprendizagem técnica.
1. Preparação e Aptidão Física
Em paralelo com a aprendizagem técnica, deve ser feita uma “aprendizagem”/preparação física dos praticantes correspondente com a modalidade que estão a praticar.
Pretende-se nas artes marciais que os atletas tenham aptidão física para a realização de uma série de exercícios/técnicas e os apliquem em combate. No entanto, esta carga física não pode nem deve ser constante em intensidade e quantidade.
Para quem começa a praticar uma arte marcial, nomeadamente o Jogo do Pau Português, o trabalho físico deve garantir uma evolução/progressão estável, mas também proteger o atleta de futuras lesões, melhorando a sua condição física e fortalecendo a sua estrutura muscular. Ao longo da vida do atleta, estes objectivos podem ir mudando de aptidão para performance e mais tarde para manutenção e, como tal, os exercícios são diferentes, as cargas físicas são diferentes e a intensidade é diferente.
A própria genética de cada praticante vai dotá-lo de capacidades físicas distintas dos seus colegas com variações ao longo da sua vida, favorecendo a sua capacidade de aprendizagem e de resposta física de modo diferente para cada componente do treino.
Se juntarmos a isto a existência de épocas desportivas, férias e outros aspectos de calendário, naturalmente vamos ter alturas de treino físico mais intenso, alturas de repouso ou quebras nos ritmo do treino.
Resultado: o “tal ponto” do triângulo vai aproximar-se e afastar-se do vértice da componente física, da aprendizagem e da época de cada atleta ao longo da vida.
3. Componente Psicológica, Social e Motivacional.
Não querendo desenvolver muito esta área, porque por si só daria mais uns capítulos a este artigo que já vai longo, vou apenas mencionar dois aspectos que no meu entender são o maior obstáculo na aprendizagem da nossa arte marcial.
a) A manutenção de um nível constante de auto-disciplina de modo a aplicar intensidade e intenção em cada defesa e ataque, mesmo quando é “só a treinar”. Muitas vezes, estamos preocupados com a melhoria do gesto técnico, passamos horas a repetir movimentos e esquecemos que cada gesto técnico tem um objectivo, e é esse que devemos treinar. Não adianta estar a repetir uma pancada para melhorar a rotação se não a estou a fazer com a intenção e intensidade de procurar atingir um alvo/adversário.
A falta de trabalho de incentivo à eficácia, ao rigor e/ou à disciplina, é tão preocupante como a dos dois aspectos mencionados anteriormente. Se por um lado a falta de condição física nos impossibilita a realização de um movimento e a falta de técnica nos limita a evolução, a falta de objectivo faz-nos perder tempo a repetir a execução de técnicas e exercícios treinando o erro, treinando sem sentido.
Aquilo a que chamo treinar para a fotografia. Fica bonito e rápido, mas não serve para nada.
b) Motivação/mentalização de que o objectivo é bater no adversário, e defender tudo o que ele conseguir lançar na nossa direcção.
No Jogo do Pau Português, não usamos protecções e a nossa arma de eleição é uma vara de madeira. Partindo do princípio que a maior parte de nós não está no treino com intenção de causar lesões aos adversários e que naturalmente se vai retrair para que tal não aconteça, é muito comum encontrar a barreira psicológica que não nos permite fazer os ataques para o corpo do adversário com medo de ele não os conseguir defender e, consequentemente, levar uma paulada.
Desde pequenos, a maioria de nós foi desincentivada a procurar o confronto físico, em especial a intenção de lesionar ou matar todos os adversários que encontramos. Não se pode esperar que, ao fim de 10, 20, 30, 40 anos, um atleta que resolve entrar numa arte marcial desligue toda a sua experiência, valores e condicionantes da sociedade e se torne um soldado pronto a enfrentar tudo e todos.
Naturalmente, o conforto de atacar um adversário sem preocupações com o seu bem-estar vai depender da confiança que temos no nosso parceiro de que consegue defender os ataques que estamos a desferir e que também conseguimos fazer o mesmo quando ele retribuir. Este conforto vem com o tempo, com o treino e com a preocupação de o reconhecer como um limite e trabalhar para o superar.
Voltando ao Jogo do Pau Português e ao tema deste artigo do ponto de vista da experiência pessoal.
Nas minhas classes, esta fase acontece com alguma frequência. Os atletas têm uma progressão/aprendizagem técnica rápida, porque o método de treino e a técnica ensinados favorecem essa aprendizagem. Antes de mais, é preciso criar a base técnica que nos permita treinar sem sofrer uma paulada.
Não quer dizer que não se exercite a componente física, mas esta visa a aptidão para executar movimentos e técnicas futuras e não os movimentos que são necessários no início da aprendizagem.
Não é defeito, é feitio.
Como escrevi em cima, usamos varas de madeira sem protecções. O aluno é ensinado e incentivado a realizar os ataques para um alvo (partes específicas do corpo do adversário), e a defender estes ataques com a defesa correcta, no tempo certo e à distância mínima (adequada ao seu estado de desenvolvimento).
Este método é o resultado do estudo e treino de gerações de praticantes de Jogo do Pau Português, no entanto, requer o trabalho técnico e psicológico individual que é diferente de atleta para atleta, como referi em cima, a confiança para defender uma vara que nos é lançada ao corpo e lançar a nossa para a cabeça de um parceiro de modo a treinar o ataque e permitir-lhe treinar a sua defesa. Nem sempre é fácil de superar.
Em resumo, haverá alturas, no treino/aprendizagem de cada atleta, em que apesar de a técnica estar correcta os objectivos de eficácia e performance não estão a ser atingidos.
CALMA… Acontece a todos…
É uma fase, é só mesmo isso. Cada atleta (ou o seu treinador) tem de perceber em que posição se encontra dentro do triângulo e como se deverá desenvolver o seu treino para corrigir/ evoluir, de modo a poder tornar-se um “artista marcial” mais equilibrado.
É essencial que cada treinador tenha esta noção bem assente e que possa explicar ao seu atleta o seu estado de desenvolvimento e o caminho a percorrer, porque em princípio será ele o detentor dos conhecimentos da modalidade que justifiquem estes desvios e é natural que o atleta que não os tenha possa sentir alguma frustração, questionando a validade de uma técnica que está a melhorar mas não mostra resultados práticos.
Divirtam-se,.. e vão treinar que já passaram muito tempo a ler isto!!!
Comentários recentes